O ano já começou com uma nova discussão tributária envolvendo a cobrança do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras, já judicializada por dezenas de contribuintes e, mais recentemente, pela própria Advocacia-Geral União (AGU), por meio da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 84, sob relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.

Por meio do Decreto nº 11.322/2022, expedido pelo então vice-presidente Antônio Hamílton Martins Mourão, publicado em 30/12/2022, as alíquotas do PI e da Cofins sobre as receitas financeiras foram reduzidas, respectivamente, de 0,65% para 0,33% e de 4% para 2%. De acordo com o seu artigo 2º, o decreto entrou em vigor na data de sua publicação (30/12/2022) e produziu efeitos a partir de 01/01/2023.

Porém, o novo governo federal (já sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva), logo em 01/01/2023, expediu o Decreto nº 11.374/2023, publicado no dia 02/01/2023, revigorando as alíquotas anteriores de 0,65% (PIS) e de 4% (Cofins). o artigo 4º deste novo decreto expressamente prevê que a sua vigência começaria na data da publicação (02/01/2023), omitindo com relação ao início da sua produção de efeitos.

O novo decreto, então, gerou polêmica a respeito das alíquotas do PIS/Cofins sobre as receitas financeiras, tendo em vista o princípio (rectius:a regra) constitucional da anterioridade nonagesimal ou noventa, prevista no artigo 195, §6º, da Constituição, pelo qual o aumento ou a criação de uma contribuição social só poderá ser exigido “após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado“.

O Fisco pretende defender a “tese” de que não houve um efetivo “aumento” das referidas contribuições, mas apenas uma manutenção das alíquotas anteriores, pois o novo decreto foi expedido ainda em 1º de janeiro, ainda que sua publicação tenha ocorrido em 02/01/2023, quando evidentemente o decreto anterior (que reduziu as alíquotas pela metade) já estava não apenas em vigor, mas também produzindo seus efeitos. A alegação é que a anterioridade não se justificaria porque o restabelecimento das alíquotas não pego nenhum contribuinte “de surpresa”, não quebrou a segurança jurídicas dos contribuintes, diante da rápida resposta dada pelo decreto de 2023.

A par dessas questões mais conceituais, formalistas, principiológicas e, porque não dizer, lógicas e matemáticas que envolvem o tema (que, a meu ver, merecem ser solucionadas em favor dos contribuintes diante da clareza e objetividade da regra da anterioridade), parece-me que o cerne da discussão não é nem de direito tributário, mas sim (ou principalmente) de direito financeiros e de política fiscal.

Aliás, a própria União questiona e murmura contra a moralidade e a irresponsabilidade fiscal do governo anterior ao reduzir as alíquotas no apagar das luzes de 2022, implicando na redução da arrecadação dessas contribuições e consequente afetação negativa na satisfação das despesas públicas sustentadas por essas fontes de custeio da seguridade social.

A “briga”, digamos assim, parece ser mas entre governo anterior e governo atual, entre a queda de arrecadação e a escassez de recursos para custear despesas públicas, entre inobservância ((ou observância) das normas jurídicas financeiras voltadas à responsabilidade fiscal. Enfim, vale insistir, um conflito de direito financeiro (receitas x despesas x orçamento) e de política fiscal entre o governo anterior e o governo atual, que certamente merece ser estudado, avaliado e, conforme o caso, buscar a responsabilização fiscal dos envolvidos.

Ora, apesar do conflito político-financeiro se estabelecer entre os governos atual e anterior, os efeitos desse tiroteio político ricocheteiam contra os contribuintes envolvidos, aqui entendidos de forma mais ampla, não se limitando aos sujeitos passivos diretos da relação jurídica tributária, mas também aqueles que arcam com o ônus da tributação (os chamados contribuintes “de fato”, os consumidores adquirentes de produtos e serviços, inclusive financeiros, que terminam por suportar essa carga tributária do PIS/Cofins).

Nessa relação entre novo e antigo governo, deve-se realmente admitir que o decreto do governo anterior atrapalhou o governo atual ao lhe retirar recursos tributários para o custeio da seguridade. porém, na relação jurídica entre Fisco e contribuintes, é preciso lembrar que o “hipossuficiente”, a parte mais fraca é evidentemente o contribuinte (sujeito passivo, detentor do dever fundamental de pagar impostos, e contribuições), e não o Fisco (sujeito ativo, detentor do poder-dever de tributar).

Sábias são as palavras do eminente professor Hugo de Brito Machado, que, em suas palestras e centenas de textos escritos (entre livros e artigos) sempre lembrava que a relação tributária é uma relação “de poder”. Enfim, é preciso separar esses relacionamentos, pois envolvem partes diferentes.

Nesse caso da modificação de alíquotas das contribuições do PIS e da Cofins, essa supremacia do poder de tributar se evidencia diante da seguinte particularidade estabelecida no artigo 27, §2º, da Lei nº 10.865/2004, que é matriz legal dos decretos federais aqui envolvidos:

“§2º O Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer, até os percentuais de que tratam os incisos I e II do caput do artigo 8º desta Lei, as alíquotas da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não-cumulatividade das referidas contribuições, nas hipóteses que fixar.”

Ou seja, o presidente da República tem a discricionariedade para calibrar as alíquotas do PIS entre 0% e 2,1% e da Cofins entre 0% e 9,65%. Não há necessidade de editar medida provisória nem muito menos enviar um projeto de lei para o Congresso. No linguajar popular, basta uma simples “canetada” do presidente (ou do vice em exercício!) para mudar as alíquotas dessas contribuições incidentes sobre a receita financeira, tanto para mais quanto para menos. A propósito, essa facilidade ou flexibilidade restou bastante evidenciada neste caso em tela: da mesma maneira que o então vice-presidente em exercício (Mourão) expediu e publicou o Decreto nº 11.322/2022 para reduzir pela metade as alíquotas, dois dias depois o atual presidente Lula estabeleceu rapidamente as alíquotas anteriores.

Agora, a Constituição estabelece o respeito ao princípio da anterioridade nonagesimal quando a mudança envolver o aumento da alíquota. Ainda assim, há mais uma flexibilidade novamente em favor do Fisco nesta hipótese: ao invés de respeitar a anterioridade do exercício financeiro (regra geral no sistema constitucional tributário brasileiro, segundo a qual o aumento do tributo só poderá ser exigido em 1º/01 do ano seguinte ao da publicação da legislação majoradora), basta esperar a noventena.

Essa atual polêmica também revela uma triste e negativa “cultura” fiscal consistente na litigiosidade e judicialização de temas que poderiam ser resolvidos de modo muito mais fácil, rápido, eficiente, justo e pacífico: ao invés de se valer do processo judicial, de movimentar a máquina judicial, de instalar um cenário de insegurança jurídica e de conflito com os contribuintes, o atual governo poderia ter majorado as alíquotas de PIS/Cofins sobre a receita financeira num patamar até superior aos 0,65% e 4% ora restabelecidos, a fim de compensar a perda arrecadatória nos três primeiros semestres. Conforme explicado, bastaria um decreto. Uma “canetada”. Nada de acionar o Judiciário. Sem polemizar, sem judicializar um embate político entre governo atual e anterior, sem quebrar a confiança que os contribuintes (e o próprio Fisco) devem ter na legislação. Esse aumento acima dos 4,65% que vinham sendo aplicados poderia ser provisório (ou seja, restabeleceria as alíquotas de 4,65% mais um adicional de 2,3% para suprir aquela redução trimestral durante três meses, retornando à carga de 4,65%).

Enfim, ao invés de judicializar a questão, o governo federal poderia (na verdade, ainda pode) resolver os eventuais problemas de caixa de forma política e direta, sem envolver o direito ou o sistema tributário e os contribuintes.

Mas não. A opção, mais uma vez, foi pela judicialização (da política), pelo embate contra os contribuintes, na contramão da eficiência e da justiça fiscal, da moralidade administrativa, do respeito aos próprios atos normativos federais. Se os contribuintes já sofriam com a “guerra fiscal” praticada pelos e entre os Fiscos, agora também são alvos de uma desnecessária “guerra fiscal” entre governo anterior e atual.

Espero que o STF entenda que a União tem ferramentas jurídicas e políticas (muito) mais eficientes e justas para pacificar esse caso do PIS/Cofins sobre receitas financeiras. É uma oportunidade interessante para o STF estimular o Fisco a buscar prioritariamente alternativas extrajudiciais e políticas para resolver suas dificuldades financeiras e políticas.

Revista Consultor Jurídico, 19 de fevereiro de 2023, 17h06.

Link: https://www.conjur.com.br/2023-fev-19/omar-augusto-piscofins-receitas-financeiras

Omar Augusto Leite Melo
Advogado e consultor tributário com mais de vinte anos de experiência profissional; professor de Direito Tributário; mestrando em Direito na área de concentração “Sistema Constitucional de Garantias de Direitos” no Centro Universitário de Bauru – ITE; presidente da Comissão de Análise Econômica do Direito e Jurimetria na OAB/SP – Subseção de Bauru; pós-graduado em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária – CEU; editor da Revista Eletrônica Tributo Municipal; foi conselheiro no Conselho Municipal de Contribuintes de Bauru/SP; autor de livros e de artigos publicados em revistas jurídicas especializadas.